Primeiro índio acreano com mestrado


Texto e fotos: Romerito Aquino

De índio a seringueiro, de seringueiro a peão, de peão a índio e de índio a pós-graduado na Universidade de Brasília (UnB). Essa é a trajetória que o índio Joaquim Paulo de Lima Kaxinawá, mais conhecido como Maná, acaba de concluir ao defender, na Universidade de Brasília (UnB), sua tese de mestrado sobre a língua e a cultura de seu povo Huni Kui.

Com as presenças de professores, universitários e representantes de seu povo, Joaquim Maná, primeiro índio acreano a virar mestre, passou boa parte de uma tarde no Instituto de Letras da UnB explicando aos doutores lingüistas o confronto de registros e memórias sobre a língua e a cultura Huni Kui desde o historiador João Capistrano de Abreu até aos dias atuais, nome que deu a sua dissertação de pós-graduação em lingüística.

Na dissertação, muito aplaudida e comemorada pelos presentes e aprovada pelos doutores da banca examinadora, Joaquim Maná apresenta o estudo lingüístico de três histórias dos índios Kaxinawá que foram registradas pelo famoso historiador brasileiro João Capistrano de Abreu quando de sua passagem pelo Acre, no início do século passado. Os registros das histórias contadas por dois jovens Huni Kui foram feitos por Capistrano de Abreu há exatamente um século em seu trabalho literário denominado de “Dois documentos sobre Caxinauás – 1911/1912”

Os dois índios kaxinawá, contatados por Capistrano, eram originários do rio Ibuaçu, em Tarauacá e contaram ao historiador cearense especializado em etnografia e em linguística as histórias do “Homem sovina” (Yauxiku nawa, em kaxinawá), do “João de barro” (Tsuna) e do “Homem aleijado” (Huni txãtu).

Em seu trabalho, o agora mestre Joaquim Maná destaca que o objetivo principal de sua dissertação é o exercício da pesquisa e da análise linguística de um indígena brasileiro Huni kui sobre sua própria língua. Maná também destaca que quis colaborar com uma atualização da escrita dos textos e palavras Hãtxa kui, usada por Capistrano de Abreu, de forma a torná-la legível para o seu povo Huni kui. Enaltecendo a importância da obra do historiador cearense para o conhecimento de seu próprio povo, Joaquim Maná faz questão ressaltar que outro objetivo de seu trabalho “foi o de contribuir para o conhecimento linguístico da língua Hãtxa kui do Brasil”.

Para fazer a análise dos textos, Joaquim Maná diz que as três histórias relatadas por Capistrano marcam muito seu povo, pois tratam da convivência e comunicação que ele tem com os animais desde os primeiros dias de sua origem. As histórias tratam, também, de onde os Huni kui obtiveram os conhecimentos sobre o fogo e os legumes. Uma das histórias, segundo assinala Maná, trata da transformação do homem aleijado em jabuti e das técnicas do como trabalhar a cerâmica.

“Foneticizamos e fonemizamos os dados de Capistrano, tomando como referência a fala dos Huni kui do Brasil. Segmentamos as palavras em suas unidades morfológicas constitutivas e fui analisando-as no contexto sintático em que ocorrem, mas também situando os trechos e sentenças em situações discursivas do quotidiano Huni kui de forma a entender suas funções pragmáticas nas relações entre falantes e ouvintes”, assinala Maná.

Resgatando a língua

Além de estudar lingüistas como Stephen Anderson, Eugenio Coseriu, Robert Dixon, Keenan Comrie e John Palmer, e antropólogos como Terri Valle de Aquino e Marcelo Piedrafita Iglesias, Joaquim Maná assinala que, para desenvolver sua dissertação, também foi fundamental a leitura dos estudos sobre a língua Pano, falada pelo seu povo Kaxinawá.

Ele lembra que o contato com fenômenos de outras línguas indígenas, faladas pelos colegas de curso da UnB, como os Kamaiurá, além da Língua Geral Amazônica, também foram muito importantes para o entendimento de fenômenos linguísticos comuns, além de fenômenos presentes unicamente em uma ou outra das línguas indígenas brasileiras.

Em sua dissertação, Joaquim Maná destaca que ela tem por objetivo estudar sua língua para resgatá-la para a atual e futuras gerações de Kaxinawá, pois em apenas seis, das 11 terras indígenas Huni Kui, só os mais velhos falam o hãtxa kui. Crianças e jovens não falam mais a língua. 

Os Huni kui são um povo de origem Pano, que se localiza no Acre e no Sudeste do Peru. Eles falam uma língua da família linguística Pano, sendo uma das menores famílias linguísticas da América do Sul. No Acre, no entanto, os Huni kui se constituem no maior grupo indígena, com 7.546 indivíduos, distribuídos em 11 terras ao longo dos municípios de Tarauacá, Jordão, Feijó, Marechal Taumaturgo e Santa Rosa.

“A presente dissertação foi o maior estímulo para que continuássemos os nossos estudos linguísticos sobre nossa língua nativa em nível de doutorado”, destaca Joaquim. Tendo acessado este nível de estudos, Maná diz que pretende responder às várias interrogações que permaneceram sobre a língua e a cultura dos Huni kui.

Ele destaca seu objetivo de desenvolver e fundamentar hipóteses linguísticas, individualmente ou com outros pesquisadores, Huni Kui ou não, sobre temas linguísticos que contam para a sua compreensão com a intuição, mas, sobretudo, com a experiência de falantes nativos dessa língua, de forma a contribuir para o avanço do seu conhecimento científico e também para fortalecimento de sua transmissão para gerações futuras.

Em sua dissertação, o mestre lingüista Huni Kui defende a constituição de uma escola infantil que, se for bem planejada e bem conduzida, pode ser, segundo ele, um espaço de reconstrução de parte das perdas lingüísticas e culturais que ocorreram durante a implantação das primeiras escolas nos anos 80. “Para isso, há que pensar e refletir as conseqüências que já tivemos e o que pode ocorrer se não buscarmos a forma mais adequada para o fortalecimento cultural e linguístico do povo Huni kui”, completa Maná.

Joaquim Maná também defende ser necessário elaborar o Projeto Político Pedagógico de acordo com as especificidades de cada povo, de cada região e de cada escola. “É necessário também estabelecer critérios e regimentos que norteiem o funcionamento desse espaço, tornando-o mais voltado para o fortalecimento dos conhecimentos culturais, das políticas sociais locais, dos valores espirituais e da cultura lingüística de cada povo”, assinala.

“Vim ao mundo para ter a idéia de caminhar no conhecimento”

Nascido há 58 anos no grande seringal Alagoas, Joaquim Maná, fala baixo, pausado, mas com firmeza de quem sempre soube o que quis ser na vida, sobre a sua ascensão de seringueiro a mestre em lingüista pela Universidade de Brasília. Primeiro índio acreano com mestrado e pai do atual assessor indígena do governo do Acre, Zezinho Kaxinawá, Joaquim Maná debita sua vitória de mestre da linguística à família, às instituições que lhes deram oportunidade e ao seu belo povo Huni Kui.

Qual a sensação de sair da aldeia e vir ser mestre numa das mais importantes universidades do Brasil?
Para mim, foi um desafio enfrentar toda essa caminhada. Comecei a lidar com o conhecimento da escrita quando já tinha 20 anos. A idéia era apenas saber ler e escrever e continuar trabalhando no seringal. Mas aos poucos a gente foi tendo mais oportunidades.

Onde e em que se graduou e como surgiu a oportunidade de fazer o mestrado?
Conclui em 2006 a graduação em Ciências Sociais na Universidade Estadual do Mato Grosso. Em 2008, soube que a Universidade de Brasília estava dando oportunidade para dois indígenas estudando suas línguas. Eu falei: eu quero também, pois era uma área que eu já vinha trabalhando. Em alguns momentos, eu tinha dificuldade de distinguir qual seria mesmo a correspondência da nossa fonética. Apesar de a gente ir definindo a grafia da nossa língua, tínhamos dificuldade de entender vários fonemas correspondentes a essa grafia.

Qual será o seu próximo passo?
Já estou selecionado para o doutorado em linguística no mesmo Instituto de Línguas da UnB, onde vou dar continuidade à minha dissertação de mestrado. Vamos fazer a descrição da língua para ensinar o conceito da escrita Hãxta Kui porque pela forma que os agentes (o professor, o agroflorestal e o de saúde) escrevem, eles apresentam dificuldade de representar a fonética pela escrita. É uma coisa que tentei fazer nesse mestrado e vou dar continuidade no doutorado. Para, assim, criar um programa de formação para o próprio Huni Kui, para que futuramente a nossa língua seja ensinada de uma forma correta, com a grafia definida por nós e não pelos pesquisadores.

A quem você debita o sucesso desse mestrado e de sua caminhada no conhecimento da língua Huni Kui?
Eu dedico a três instâncias. Primeira, a minha família, o meu pai, a minha mãe, que me botou nesse mundo para ter a idéia de caminhar no conhecimento. Segunda, dedico às instituições por onde eu passei e que sempre me apoiaram. E terceira, ao meu povo, que está no Brasil, está no Peru. Espero que a gente consiga fazer um trabalho em conjunto para que todo o povo Huni Kui, tanto do Brasil quanto do Peru, tenha essa compreensão de que a gente tem que decidir a grafia do Hãxta kui. (R.A.)

Do falar escondido à defesa da língua Hãxta kui na academia

“Um linguista indígena importante que está contribuindo para o conhecimento científico das línguas indígenas brasileiras”. É assim como a professora e doutora linguista Ana Suelly Arruda Câmara Cabral classifica o índio Joaquim Maná, agora mestre em linguística pela Universidade de Brasília, uma das mais renomadas do país.

Como orientadora de sua tese de mestrado, Ana Suelly considera que a história do mestre indígena Kaxinawá se confunde com a própria história da educação indígena do Acre, que mostrou ser uma educação diferenciada e que, como pioneira, revolucionou a história da educação indígena no Brasil. Uma educação que, a partir do trabalho importante da Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-AC), mostra ser capaz, como destaca Suelly, de levar um índio à universidade, ao mestrado e doutorado, onde Joaquim Maná já está selecionado.

“O trabalho do Joaquim tem vários pontos relevantes. Ele como indígena está mergulhando na descrição lingüística de sua própria língua. É ele tentando olhar sua língua de fora, documentando-a, analisando-a e se preparando, com isso, para formar professores indígenas, dando esse conhecimento lingüístico que ele está acumulando aos outros professores Kaxinawá”, assinala a doutora Suelly.

Outra professora que aprovou e testemunhou a importância do trabalho de Joaquim Maná sobre língua dos índios Huni Kui foi a doutora linguista Maria Lisa Ortiz, também participante da mesa examinadora do Instituto de Letras. “Só tenho a agradecer a oportunidade de conhecer a riqueza cultural e língua de seu povo”, disse Ortiz, ao destacar a “forma tão bonita” com que o mestre linguista Kaxinawá levantou os dados sobre a língua de seu povo e os cuidados que devem ser adotados para a sua preservação em favor das atuais e futuras gerações indígenas.

Apresentado pela doutora Ana Suelly como o cientista social que permitiu ao Brasil e o mundo saber que “havia índio no Acre”, o antropólogo Terri Valle de Aquino foi outro que deu seu testemunho sobre a importância científica da dissertação de mestrado de Joaquim Maná, que ele conheceu muito jovem, em meados da década de 70, enquanto disseminava entre os Kaxinawá a semente da organização para a retomada de seus antigos territórios.

Emocionado, Terri Aquino parabenizou Maná por ser agora seu “ilustre” colega de mestrado, uma vez que o antropólogo também fez sua pós-graduação na mesma UnB, por coincidência abordando a situação do próprio povo Kaxinawá, que de índios, haviam virado seringueiros e estavam virando peões de fazenda nas décadas de 60 e 70 no Acre.
Terri Aquino lembrou que a dissertação de mestrado de Joaquim Maná sobre o estudo da língua de seu povo representa um salto histórico na vida dos Kaxinawá, que na década de 70 já era um povo totalmente despossuído de território, de tradições, de cultura e que tinha vergonha de falar a sua língua na frente dos brancos.

“Esse trabalho do Joaquim está inserido dentro da perspectiva da retomada da cultura Kaxinawá, que está bebendo não um copo, mas uma panela de cultura, trazendo a beleza desse modo de ser Kaxinawá e valorizando a sua língua. Naquela época, com a crise dos seringais, os Kaxinawá já diziam que não eram mais seringueiros, mas Huni Kui...” (R.A.)

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